quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Pesquisa sobre os gêneros discursivos: - Romance Policial

Romance Policial

DUBITO ERGO SUM
Páginas de Ceticismo


A ESTRUTURA DO ROMANCE POLICIAL:uma introdução
Adriana Maria Almeida de Freitas

Vários autores tentaram sistematizar as regras do romance policial. François Fosca, em Histoire et technique du roman policier[1] fez a seguinte síntese: parte-se de um caso aparentemente inexplicável; uma (ou mais) personagem é culpada injustamente , a partir de índices superficiais; o analista (detetive) observa, raciocina e derruba as teorias apressadas; a solução do caso é sempre coerente e imprevista; quanto mais extraordinário for o mistério, mais fácil será sua resolução (como, por exemplo n’ Os crimes da Rua Morgue); o que permanece no final é sempre a solução correta.
De fato, o antológico Dupin utiliza o método hipotético-dedutivo, partindo dos fatos, chegando a uma teoria provisória que lhe possibilita voltar aos fatos para verificar se tudo foi explicado. Ao término dessa etapa, a investigação é encerrada e, em seguida, o culpado é desmascarado.
Para o detetive não há, pois, obstáculo intransponível: ele é infalível e sua função é desvelar a trama arquitetada. No romance policial clássico, se o detetive porventura se enganar, isto é atribuído à baixa qualidade da história, pois não há mistério capaz de derrotar um verdadeiro detetive-analista.
Assim, o detetive aparece sempre como uma figura excêntrica, dotada de uma enorme superioridade intelectual, bastante cerebral, solteiro, cheio de manias e incapaz de amar.

Se a rotina de vida que ali levávamos viesse a ser conhecida do mundo, ter-nos-iam como doidos – ou, talvez, por simples malucos inofensivos... Nossa reclusão era completa. Não recebíamos visitas.
Em tais ocasiões, não podia deixar eu de notar e de admirar em Dupin certa habilidade analítica peculiar. Parecia, também, sentir acre prazer no exercitá-lo, senão mais exatamente em exibi-la, e não hesitava em confessar a satisfação que disso lhe provinha.[2]

Dupin só mostrava amor e fascínio pela noite, pela leitura, escrita e passeio pelas ruas, o que contribuía para delinear seu perfil excêntrico.
O romance policial busca a mais completa verossimilhança. Trabalha prioritariamente com índices materiais, renegando os psicológicos; dissipa o imaginário, o poético, tentando deixar de lado as instabilidades do coração em prol do exercício racional.
Tal exercício racional pode incluir o aproveitamento de informações jornalísticas para desvendar crimes. Em “O mistério de Marie Roget”[3], de Edgar Allan Poe, esse procedimento funciona inclusive como estruturador da narrativa. O personagem-detetive analisa as versões dos jornais – fundamentalmente equivocadas ou manipuladoras – acerca de aspectos ainda não elucidados do crime (momento, motivo, assassino).
No curso da narrativa de Poe, expõe-se não só a relação do indivíduo com a massa e o mecanismo de proteção que o aglomerado urbano oferece pela via do anonimato, como também o poder dos jornais em sua interação com esse público difuso. Com efeito, no texto está claro que os jornais, ao mesmo tempo em que podem conferir notoriedade a componentes quase invisíveis na multidão e na própria sociedade (Marie Roget era uma Grisette que trabalhava numa loja de perfumes), arrogam-se uma legitimidade que lhes permite levantar hipóteses pretensamente científicas acerca das circunstâncias do crime.

(...) Os jornais se apoderaram [grifo nosso] imediatamente do assunto e a polícia se aprestava a fazer sérias investigações quando, uma bela manhã... (p.95)
(...) Como o tempo passasse sem que viessem descobertas, mil rumores contraditórios circulavam, ocupando-se os jornalistas em sugestões. (p.99)
(...) Desse modo, o jornal tentava criar a impressão [grifo nosso] de uma apatia por parte dos parentes de Maria... (p.100)
(...) Devemos recordar-nos de que, em geral, o objetivo de nossos jornais é antes criar uma sensação, lavrar um tento, que favorecer a causa da verdade. Este último fim só é visado quando parece coincidir com os primeiros. O órgão da imprensa que simplesmente se ajusta às opiniões comuns (por mais bem fundadas que possam essas opiniões ser) adquire para si o descrédito da população. A massa popular olha como profundo apenas quem lhe sugere contradições agudas das idéias generalizadas. Na lógica, não menos do que na literatura, é o epigrama que se torna mais imediato e mais universalmente apreciado. E em ambas está na mais baixa ordem de merecimento. (p.104)[4]

Esse último fragmento transcrito da obra de Poe encerra tanto uma crítica acerca da relação da imprensa com a opinião pública, quanto, no contexto da narrativa, o desvelamento de uma pretensão pseudocientífica que fundamentava as opiniões dos jornalistas sobre o caso. Não escapam também à hábil tessitura de Poe, o senso de competição entre os jornais, cuja força-motriz seria a perniciosa aliança entre a vaidade dos jornalistas e a intenção de venda do próprio jornal, e a própria onipresença do valor do dinheiro nas reiteradas referências ao oferecimento de uma recompensa por informações prestadas sobre o caso.
Em geral, o narrador de romance policial apresenta o caso inserindo na história uma dose tal de terror que paralisa a reflexão e o leitor fica ansioso, pedindo ajuda, visto que sozinho se sente incapaz de solucionar o mistério. Nesse momento, o detetive entra em cena com o objetivo de resgatar “a verdade”. A partir de então, o leitor prende-se à narrativa pela curiosidade que ela proporciona, sempre na expectativa de que haja um desfecho satisfatório.
Tal curiosidade suscitada é muito diferente daquela já vista no romance romântico, pois aqui, no policial, ela se alia ao medo, artisticamente modulado.
Nesses termos, o detetive vira uma espécie de herói e o público passa a desejar que ele reapareça em outras narrativas. A matriz das séries contemporâneas é, então, o romance policial. Conan Doyle, por exemplo, precisou ressuscitar Sherlock Holmes para atender às exigências do público[5]. Esta sensível inclinação ao sucesso, possibilitou a exploração comercial do romance policial em larga escala. O gênero habilmente trabalhado por Edgar Allan Poe vulgariza-se e passa a ser escravo das regras do mercado nas quais o que vale não é a escrita, mas sim a invenção da história.
Conan Doyle lançou mão do maquiavelismo no romance policial. O assassino exerce um papel de agente da história desde o inicio: manobra o inimigo, faz tudo para disfarçar o crime, introduz falsos índices, suprime testemunhas incômodas, entre outras iniciativas. Doyle também se utiliza do então emergente conhecimento da medicina legal. Sherlock Holmes é o primeiro detetive realmente cientifico. Ele era capaz de descobrir a origem de uma mancha de lama; a natureza de um tabaco; tipo de pneu, além de fazer exame grafológico e outros.
Tais mecanismos, cada vez mais sofisticados, começaram a criar problemas na relação do leitor com o romance policial: ao contrário do que acontecia com os romances mais comerciais, o fruidor agora se sentia incapaz de desvendar o mistério. O romance jogo surge então para tentar prender a atenção do público, colocando-o diante de uma charada. Van Dine[6], em 1928, chegou inclusive a sistematizar as regras necessárias a este tipo de romance: leitor e detetive devem ter a mesma oportunidade de desvendar o mistério; o narrador não deve lançar mão de truques e tapeação, além dos já utilizados pelo criminoso; não pode haver intriga amorosa para não atrapalhar o problema intelectual; o criminoso não pode ser descoberto através de suborno proposto pelo detetive ou pela polícia; sempre há um cadáver para causar horror e desejo de vingança; o mistério deve ser descoberto por meios realistas; só pode haver um detetive, caso contrário, o leitor ficaria em desvantagem; o culpado dever ser um dos personagens da história, que o leitor conheça e que desperte interesse; o culpado não pode estar entre os empregados domésticos; só pode haver um culpado; o mistério deve estar evidenciado desde o início, de modo que uma releitura possa mostrar ao leitor o quanto ele foi desatento se comparado ao detetive; o romance deve ser verossímil, mas não cheio de descrições, visto que se trata de um jogo; o criminoso não deve ser um profissional.
Por fim, Van Dine enumera uma série de macetes desprovidos de originalidade que não devem pois, aparecer de modo algum: identificação do culpado através de uma ponta de cigarro; confissão realizada em sessão espírita; falsas impressões digitais; álibi constituído por um manequim; cão que não late revelando que o assassino é familiar; apresentação de um irmão gêmeo como culpado; utilização de soro da verdade; associação de palavras para descobrir o culpado; decifração de um criptograma.
É claro que a validade destas regras é bastante questionável. Inúmeros romances policiais clássicos e contemporâneos têm, na pratica, desmentido algumas delas. Exemplo marcante em muitas histórias policiais são a recorrência de intrigas amorosas; a existência de mais de um investigador (os famosos auxiliares); empregados domésticos aparecendo como culpados;a existência de vários culpados (Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie); entre outras contradições.
O romance jogo tem os seus limites, uma vez que é impossível extrair completamente o humano e o sensível do romance policial. A obra de Agatha Christie é um bom exemplo disto. Com o detetive Hercule Poirot, A . Christie propôs ao leitor uma série de jogos. O leitor era desafiado a “matar a charada” e descobrir o culpado.
Em Assassinato no Expresso Oriente[7], de 1933, por exemplo, os capítulos são organizados numa seqüência lógica que desafia o leitor. O livro se divide em três partes: “Os fatos”; “Os testemunhos”; “Hercule Poirot pára para pensar”. Na primeira parte, o problema é apresentado: ocorre um crime misterioso dentro de um trem. Quem seria o culpado? Hercule Poirot, o clássico detetive dotado de inteligência superior fica encarregado de descobrir o criminoso. Na segunda parte, Poirot toma o depoimento de todos os passageiros, as pistas começam a aparecer. No entanto, todos os suspeitos em potencial possuem álibis, o que dificulta bastante a resolução do problema.
Mesmo auxiliado pela planta do trem, desenhada no livro, e por uma série de esquemas e sínteses que Poirot vai rascunhando ao longo da investigação, o leitor não consegue montar o quebra-cabeça e desvelar o criminoso. Dessa forma, a terceira e última parte consiste numa espécie de tributo à inteligência dos detetives, em geral, e de Poirot, em especial. A própria denominação desta parte é reveladora: “Hercule Poirot pára para pensar”. É exatamente do raciocínio de Poirot que sairá a resposta. O diretor da estrada de ferro, Bouc, e o médico, Constantine, que foram companheiros de investigação de Poirot, pareciam desanimados com a falta de pistas claras. Observemos o que diz Bouc a Poirot após o término dos depoimentos e o que Poirot lhe responde:

- Lê voilà! – exclamou, ao ver o detetive – Se resolver este caso; mon cher, eu passarei a acreditar em milagres! (...). não consigo distinguir o princípio do fim.
- É isto que torna o caso tão interessante para mim – comentou Poirot, - Todos os caminhos normais nos foram cortados. Será que essa gente diz a verdade ou está mentindo? Não temos como saber. Tudo se resume em exercício mental[8].

É através da utilização do raciocínio que Poirot consegue resgatar cada parte do quebra-cabeça e chegar à solução do problema. O crime fora cometido, na verdade, por doze pessoas! Apesar de genial, o plano conseguiu ser desvendado pela inteligência superior de Poirot, que foi analisando algumas pistas deixadas. Ao final, concluiu que os doze assassinos construíram álibis mutuamente.
O romance jogo constitui, em suma, uma forte vertente do romance policial. Todavia, seus limites fizeram com que até mesmo Agatha Christie abandonasse tal vertente e passasse a trabalhar mais o lado psicológico dos personagens, num segundo momento.
Raymond Chandler em seus estudos L’ art d’ assassiner ou la moindre des choses (1944) e Quelques remarques sur le roman policier (1949), preocupado com as referidas limitações, introduz, profeticamente, a seguinte reflexão:

D. Sayers tentou tomar uma decisão entre o romance policial e o romance de costume, conservando o elemento policial. Ela tentou passar... dos que sabem construir uma história, mas não sabem escrever, aos que sabem escrever, mas que, muito freqüentemente, são incapazes de construir uma história... Ela não fez senão passar de um gênero popular a outro. Não quero crer que isso seja impossível e que, em algum lugar (não serei talvez eu), que se chegue a escrever um romance que, conservando ostensivamente seu elemento de mistério e sabor picante que isso traz, será realmente um romance psicológico e de atmosfera, onde terão papel a violência e o medo[9].

A grande arte, de Rubem Fonseca, possui exatamente essa marca. É híbrido e não se restringe a qualquer fronteira. Mescla também suspense, sexo, violência e inúmeros elementos extraídos da cultura pop. Essa obra integra, no meu entendimento, a linha da literatura brasileira contemporânea que está sendo privilegiada em meu projeto de tese.
Tal transgressão das fronteiras do romance policial stricto sensu foi duramente criticada por Boileau e Narcejac:

(...) Eis porque esses “híbridos” nunca dão toda a satisfação. Põem em cena dois talentos diferentes que tendem a prejudicar-se reciprocamente. No romance policial comum, a identificação do leitor com o herói é total (...). Pelo contrário, no romance policial estabelece-se, como se diz, um certo “distanciamento” entre o leitor e o personagem, porque sempre se esperou a continuação e o lance teatral final. Quando se lê um romance, é o presente que conta. Quando se lê um romance policial, é o futuro que importa, mesmo e sobretudo se se trata de um suspense. Duas ópticas! Dois tipos de leitura! E é arriscada toda tentativa de mistura[10].

Trata-se de um ponto de vista questionável, já que na mesma obra de que esta citação foi extraída, Boileau e Narcejac sistematizaram vários caminhos trilhados pelo romance policial desde Edgar Allan Poe, ressaltando que o romance policial, ao longo do tempo, apresenta-se de forma variada – todas elas já latentes na origem do gênero.
Essa discussão torna-se ainda mais controvertida se introduzirmos algumas considerações feitas por Todorov, em seu estudo intitulado “Tipologia do Romance Policial”:

(...) o romance policial tem sua normas; fazer “melhor” do que elas pedem é ao mesmo tempo fazer “pior”: quem quer “embelezar” o romance policial faz “literatura”. Não romance policial. O romance policial por excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se adapta (...) o melhor romance será aquele do qual não se tem nada a dizer (...) não se pode medir com as mesmas medidas a “grande” arte e a arte “popular”[11].

Na verdade, esta afirmativa pode ser relativizada, pois o próprio autor aponta uma subdivisão do gênero policial (e uma conseqüente variação de regras) em romance policial clássico ou de enigma, romance negro e romance de suspense; somam-se ainda as variações temporais e sociais. Não está sendo abandonada, no entanto, a idéia de que realmente o policial possui alguns elementos que não devem ser adulterados, dentre tais, o exercício da razão; a existência de, no mínimo duas historias; a imunidade do detetive; o trabalho com o suspense e o mistério em torno de um crime.

BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros e. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1988.
BENJAMIN. Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José M. Barbosa, Hemerson A. Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
______. “O narrador”. In:_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BOILEAU-NARCEJAC. O romance policial. São Paulo: Ática, 1991
CANDIDO, Antônio.”A personagem do romance”. In:____ et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.
FONSECA, Rubem. A grande arte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991
JAMESON, Fredric. “Pós-Modernidade e Sociedade de Consumo”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n° 12, pp.16-26, jun. 1985.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Lisboa: Editorial Presença, 1962
POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1981.
ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem”.In:____. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.
SILVA, Vítor Manuel Aguiar e. “O romance”. In:_____. Teoria da Literatura. Lisboa: Almedina, 1982.
SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1985.
TODOROV, Tzvedan. “Tipologia do romance policial”. In:____. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectivas. 1970.
NOTAS
[1] Apud BOILEAU-NARCEJAC (1991)
[2] POE, E. A. (1981) p.68
[3] POE, E. A. (1981)
[4] POE, E.A. (1981)
[5] BOILEAU-NARCEJAC (1991) p.27
[6] Apud ibid., p.38 e ALBURQUERQUE, P. M. (1979) p.23-55
[7] CHRISTIE, A. (s. d.)
[8] CHRIS,A. p.143
[9] Apud, BOILEAU-NARCEJAC (1991) p.63
[10] Ibid., p.83
[11] TODOROV, T. (1970) p.25
Aurea de Oliveira e Paula Regina
26/09/2007

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