quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Pesquisa sobre os gêneros discursivos: - Relato de Experiência Científica

Relato de Experiência Científica

A SITUAÇÃO COMUNICATIVA DO GÊNERO RELATO DE EXPERIÊNCIA DE ATUAÇÃO PROFISSIONAL
Jocília Rodrigues da Silva (UFBP)
Poliana Dayse Vasconcelos Leitão (UFPB)
1. INTRODUÇÃO
Para transformar as atuais práticas de ensino-aprendizagem da língua materna faz-se necessário adotar a noção de gênero, visto que os gêneros textuais articulam as práticas sociais e os objetos escolares, constituindo-se em instrumentos privilegiados para o desenvolvimento das capacidades necessárias à compreensão/ produção oral e escrita dos mais variados textos existentes, pois, como afirmam muitos estudiosos, aprender a falar, ler e escrever é, principalmente, aprender a compreender e produzir enunciados através de gêneros. Entretanto, em virtude de o trabalho com esta noção ser ainda recente e estar se expandindo, verifica-se a necessidade de pesquisas voltadas para a descrição dos gêneros e para a intervenção, com vistas ao desenvolvimento das habilidades para apropriação de gêneros.
Tendo em vista tal necessidade, pretendemos esboçar um modelo escolar de relato de experiência, que favoreça, sobretudo, a formação de professores. Nesse sentido, a pesquisa sobre a descrição dos gêneros se torna imprescindível e anterior a qualquer projeto de intervenção didática, pois segundo Schneuwly & Dolz (1997), o gênero trabalhado como objeto de ensino-aprendizagem é sempre uma variação do gênero de referência.
Com essa visão, o presente trabalho tem por objetivo reunir elementos para a descrição do gênero relato de experiência, observando o nível da situação de ação de linguagem, isto é, a situação comunicativa em que os textos pertencentes a esse gênero são produzidos. O corpus deste trabalho está constituído de 15 relatos de experiência, sendo 05 relatos da revista Leitura: Teoria e Prática, 05 da revista Psicopedagogia e 05 da revista Linha D’água.
2. SITUANDO O RELATO DE EXPERIÊNCIA NOS AGRUPAMENTOS DOS GÊNEROS
De acordo Schneuwly (1998:04), o termo gênero, advindo da retórica e da literatura, ganhou extensão na obra de Bakhtin (1979), que define gênero como sendo tipos relativamente estáveis de enunciados elaborados em cada esfera de troca (lugar social dos interlocutores), os quais são caracterizados pelo conteúdo temático, estilo e construção composicional, e escolhidos em função de uma situação definida por alguns parâmetros (finalidade, destinatários, conteúdo). Ou seja, os gêneros do discurso seriam formas de dizer sócio-historicamente cristalizadas provenientes das necessidades produzidas em diferentes lugares sociais da comunicação humana.
Como afirmam Santos & Barbosa (1999: 04), a noção de gênero considera, além dos elementos da ordem do social e do histórico, aspectos estruturais do texto, situação de produção e forma de dizer. Esta noção de gênero vem sendo adotada para o processo de ensino/ aprendizagem de língua materna, favorecendo uma melhor produção e compreensão de textos orais e escritos, através da seleção que oriente as propostas curriculares, definindo princípios, delimitando objetivos, conteúdos e atividades (Santos & Barbosa, op.cit. p. 05).
Dolz & Schneuwly (1996), vislumbrando o processo ensino/aprendizagem, propuseram cinco agrupamentos de gêneros com base em três critérios: domínio social da comunicação a que pertencem; capacidades de linguagem envolvidas na produção e compreensão desses gêneros e sua tipologia geral. São eles:
a) Agrupamento da ordem do narrar – envolve os gêneros cujo domínio é o da cultura literária ficcional, marcados pela manifestação estética e caracterizados pela mimesis da ação através da criação, da intriga no domínio do verossímil.. Exemplos: contos de fada, fábulas, lendas, narrativas de aventura, de enigma, ficção científica, crônica literária, romance, entre outros.
b) Agrupamento da ordem do relatar – comporta os gêneros pertencentes ao domínio social da memorização e documentação das experiências humanas, situando-as no tempo. Exemplos: relato de experiências vividas, diários íntimos, diários de viagem, notícias, reportagens, crônicas jornalísticas, relatos históricos, biografias, autobiografias, testemunhos etc.
c) Agrupamento da ordem do argumentar – inclui os gêneros relacionados ao domínio social da discussão de assuntos sociais controversos, objetivando um entendimento e um posicionamento frente a eles, exigindo para tanto, sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição. Exemplos: textos de opinião, diálogos argumentativos, cartas de leitor, cartas de reclamação, cartas de solicitação, debates regrados, editoriais, requerimentos, ensaios argumentativos, resenhas críticas, artigos assinados, entre outros.
d) Agrupamento da ordem do expor – engloba os gêneros relacionados ao domínio social de transmissão e construção de saberes, visando de forma sistemática possibilitar a apreensão dos conhecimentos científicos e afins, numa perspectiva menos assertiva e mais interpretativa, exigindo a apresentação textual de diferentes formas dos saberes. Exemplos: textos expositivos, conferências, seminários, resenha, artigos, tomadas de notas, resumos de textos expositivos e explicativos, relatos de experiência científica.
e) Agrupamento da ordem do descrever ações – reúne os gêneros cujo domínio social é o das instruções e prescrições, revisando a regulação ou normatização de comportamentos. Exemplos: receitas, instruções de uso, instruções de montagens, bulas, regulamentos, regimentos, estatutos, constituições, regras de jogo.
Neste enfoque, o relato de experiência de atuação profissional é entendido com um gênero de texto que pertence ao agrupamento dos gêneros da ordem do expor, cujo domínio social de comunicação é o da transmissão e construção de saberes. Nesse sentido, quando informado teoricamente, o relato de experiência permite a apreensão de conteúdos numa perspectiva que envolve a interpretação ao lado da asserção, constituindo-se num instrumento relevante para registrar a produção do conhecimento sobre a construção do processo de ensino-aprendizagem em sala de aula.
2. 1. Situação de ação de linguagem (ou comunicativa).
De acordo com Schneuwly (1998, apud Machado, 1999, p. 97), toda produção textual tem como base de orientação uma situação de ação de linguagem, que envolve representações do produtor sobre aspectos dos mundos físico e sócio-subjetivo. Essas representações se manifestam em duas direções: a do contexto de produção, constituído por oito tipos de representações: local, momento de produção, emissor, receptor, instituição onde se dá a interação, o papel social representado pelo emissor e receptor, objetivos que o enunciador quer atingir sobre o destinatário; e a do conteúdo temático, aquilo que é ou pode ser dito, através do gênero, marcado por uma construção composicional, estilo.
Considerando esta perspectiva, tentaremos descrever como se manifestam as representações do contexto de produção em relatos de experiência de atuação profissional, publicados em periódicos. A observarmos os relatos de experiência de atuação profissional em três diferentes periódicos de divulgação científica, verificamos que o primeiro agente a influenciar a produção desse gênero é a instituição onde se dá a interação, representada pela Associação de Leitura do Brasil (ALB) encarregada da publicação da Revista Leitura: Teoria e Prática; Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABP) responsável pela publicação da Revista Psicopedagogia, e a Associação de Professores de Língua e Literatura (APLL) que publica a Revista Linha D’água. É interessante ressaltar que o fato de as revistas estarem vinculadas a associações revela que elas têm um posicionamento sócio-histórico e ideológico determinado e que seus informantes, bem como os assinantes aceitam esse posicionamento. Outro aspecto importante é que todas as revistas analisadas afirmam que os artigos assinados são de responsabilidade dos autores, mas se reservam o direito de publicar ou não as matérias enviadas. A partir, desta afirmação constata-se que o conselho editorial das revistas mantém controle sobre o que é publicado e, num tom sugestivo, direciona a leitura do leitor, uma vez que acredita conhecer o perfil de seus leitores-modelo, dessa forma, o como de ação adotado no e pelo discurso se constrói no conteúdo previsto.
Levando em conta os leitores-modelo, constatamos nos periódicos analisados, três tipos: 1) Na revista Leitura: Teoria e Prática, segundo Silva (1998), seu destinatário é um professor-leitor em formação que assume a postura reflexiva e crítica diante da leitura[1]; 2) Na revista Linha D’água, o leitor é um professor de Língua e Literatura em nível de 1º e 2º graus “interessado, à procura de questões que possam levá-lo a rever sua prática ou um professor cansado e explorado, querendo respostas, caminhos claros que facilitem sua tarefa tão pouco satisfatória quanto aos resultados educacionais e financeiros. Em um ou outro caso, é um professor que ainda não perdeu o entusiasmo e se interessa por publicações de sua área e procurando respostas prontas questiona as que obteve e ao encontrar novas questões assume-as com rigor de certeza” (Mariano, 1988); 3) Na revista Psicopedagogia, os destinatários são profissionais atuantes na área de Psicopedagogia e áreas afins (Fonoaudiologia, Psicologia, Pedagogia, Serviço Social), preocupados em definir as abordagens preventivas e terapêuticas de Psicopedagogia. (Noffs, 1998).
Percebemos que ao controlar os artigos a serem publicados, a instituição através do conselho editorial também seleciona os papéis de produtor, que se assemelham ao perfil de leitor-modelo esperado pela revista. Desse modo, vamos ter como emissor da revista Leitura: Teoria e Prática, alunos e/ou professores envolvidos com atividades em nível de 3º grau ou pós-graduação e bibliotecários, preocupados com o ensino-aprendizagem de leitura nos seus aspectos teóricos e práticos. Na revista Linha d’água, o emissor está representado por professores do 3º grau ou mestrandos, interessados em divulgar seus trabalhos e contribuir para a melhoria das práticas de leitura e produção de textos no ensino de 1º e 2º graus. Na revista Psicopedagogia, o emissor é um profissional graduado em Pedagogia, Fonoaudiologia, Psicologia, Serviço Social e área afins, com pós-graduação em nível de mestrado e/ou doutorado em Psicopedagogia, preocupados com os problemas de aprendizagem escolar.
Tendo em vista os perfis de leitores e produtores, podemos constatar que as revistas Leitura: Teoria e Prática e Linha d’água têm como finalidade estabelecer um diálogo com o receptor, possibilitando-lhe o acesso a informações e experiências a respeito da leitura e produção de textos, a reflexão sobre sua própria prática e a mudança de perspectiva. Além de se preocupar com a formação do professor-leitor reflexivo e crítico, a revista Psicopedagogia objetiva informar os profissionais de Psicopedagogia e áreas afins quanto às possíveis soluções para os problemas de ensino-aprendizagem de ordem patológica ou não.
Em função dos objetivos traçados por cada revista, verificamos que estes refletem o discurso de transformação social, divulgado pelo momento sócio-histórico em que vivemos, assimilado no contexto educacional, através da teoria sócio-interacionista de Vygotsky e da de leiturização de Foucambert, fundamentada nas idéias de Paulo Freire.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da observação das direções que norteiam as representações dos gêneros textuais, o contexto de produção e o conteúdo temático, verificamos que, nos periódicos analisados, os relatos de experiência refletem a representação que os periódicos têm acerca do mundo físico e sócio-subjetivo relacionado ao processo de ensino-aprendizagem. Conseqüentemente, no momento em que os produtores e leitores-modelo escolhem um determinado periódico como referencial para seu trabalho, assumem a representação nele apresentada.
Assim sendo, constatamos, como afirma Schneuwly, que o relato de experiência, assim como toda produção textual, orienta-se por uma situação de ação de linguagem que está pautada num contexto sócio-histórico-ideológico determinado. Esse contexto é refletido na concepção teórico-metodológica divulgada pelo periódico, norteando os relatos de experiência que, por sua vez, interferem na formação e atuação do professor.
No caso dos periódicos analisados, estes divulgam o discurso de transformação social, mostrando que tal transformação depende do professor. Este deve assumir uma postura crítica e reflexiva sobre sua postura de ensino, reavaliando-a e modificando-a, implicando numa mudança de perspectiva.
4. BIBLIOGRAFIA
BAKTHIN, M. (1953) Os gêneros do discurso. IN –––. Estética da criação verbal. Tradução do francês de Maria Ermantina G. G. Pereira, São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1990, p. 280-326.
DOLZ, J. & SCHNEUWLY, B. et alii. A Exposição Oral. IN DOLZ, J. & SCHNEUWLY, B. (1998) Pour un Enseignement de l’Oral: Iniciation aux genres formels à l’école. Tradução de Roxane Rojo, Paris: ESF Editeur, p. 141-161.
DOLZ, J. & SCHNEUWLY, B. (1996) Gêneros e progressão em expressão oral e escrita: elementos para reflexões sobre uma experiência suíça. (Francófona). Enjeux: 31-49.Tradução de Roxane Rojo (inédita).
GOMES, E. M. F. (1998) A Reformulação no discurso de divulgação científica: o relatório no ensino médio profissionalizante. Campina Grande: UEPB, p. 24-31.
MACHADO, A. R. (1999) Gêneros de Textos, Heterogeneidade Textual e Questões Didáticas. Boletim da ABRALIN, Florianópolis, v. 23, p. 94-108.
–––––. (1999) Ensino-aprendizagem de produção de textos na universidade: a descrição dos gêneros e a construção de material didático. III Congresso Latino americano de Estudos Del Discurso- Discurso para el Cambio.Chile, p. 01-11.
MARIANO, Ana Salles. (1988) Interferências: Leituras Cruzadas. IN Linha D’água.São Paulo: APLL, p. 77-82.
MOTTA-ROTH, D. e HENDGES, G. R. (1998) Uma Análise Transdiscipinar do Gênero Abstract. INTERCÂMBIO, v. VII, p. 117-125.
NOFFS, N. De Aquino. Revista Psicopedagogia. São Paulo: Salesianas, ABPP, 1998, v. 17, nº 45, p. 02.
ROJO, R. H. R. (1998) Elaborando uma Progressão Didática de Gêneros – Aspectos lingüístico-enunciativos no agrupamento de gêneros “relatar”. 8º INPLA. São Paulo: LAELL/PUC, p. 01-19.
–––––. (1998a) A Teoria dos Gêneros em Bakhtin: Construindo uma perspectiva enunciativa para o ensino de compreensão e produção na escola. Anais do Seminário Estudos Enunciativos no Brasil: História e Perspectivas.São Paulo: USP, p. 01-20.
––––. (1999) Interação em Sala de Aula e Gêneros Escolares do Discurso: Um Enfoque Enunciativo. Anais do II Congresso Nacional da ABRALIN. Florianópolis, p. 01-15.
SANTOS, G. T. dos S. & BARBOSA, J. P. (1999) Gêneros do Discurso. In ––. Língua Portuguesa no Ensino Fundamental: Por uma abordagem enunciativa (Parte 2), inédito, São Paulo: PUC, p. 01-10.
SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. (1997) Os gêneros escolares – Das práticas aos objetos escolares. Tradução de Glaís Sales Cordeiro, inédito, p. 01-15.
SILVA, L. L. M. A (1998) Revista Leitura: Teoria e Prática e o professor - um leitor em formação. In MARINHO, M. e SILVA, C. S. R. da. (orgs) Leituras de Professor. São Paulo: Mercado de Letras, ALB, p. 141-156.
5. PERIÓDICOS ANALISADOS
Leitura: Teoria e Prática. Porto Alegre: ALB/Mercado Aberto, nº6, dez-85, p.39-44./ nº 7, jun-86, p. 28-35./ nº 30, dez-97, p. 78-86.
Linha D’água. São Paulo: APLL, nº 4, 1986, p. 53-56./ nº 5, 1987, p. 72-82./ nº 8, 1993, p.47-59./ nº 9, 1995, p. 41-45.
Psicopedadogia. São Paulo: Salesianas, ABPP, v.16, nº 41, ago-87, p.25-32./ v.17, nº 46, nov-98, p.44-52./ v.18, nº 47, mai-99, p.35-43.
[1] Embora a Associação de Leitura do Brasil (ALB) explicite no final de todos os números da revista Leitura: Teoria e Prática que “dirige-se a professores de todos os níveis, bibliotecários, editores, livreiros, jornalista e demais profissionais ou estudantes preocupados com a sua atualização e com a melhoria das condições de leitura da população brasileira”.
Aurea de Oliveira e Paula Regina
26/09/2007

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